A geração que nos sucede receberá um legado ameaçador, que são os graves problemas ambientais que afligem o nosso planeta. Muito embora devamos ser críticos em relação ao tom histérico, catastrófico e apocalíptico com que organizações ambientalistas costumam se pronunciar sobre o futuro do planeta e de seus habitantes, existe pouca dúvida de que a crise é, de fato, real. Poluição dos rios, dos mares e do ar, desmatamento, redução da camada de ozônio, extinção de espécies animais, aquecimento global — são apenas alguns dos itens na pauta de ambientalistas, governos e religiosos. Essas preocupações tocam diretamente a sobrevivência da raça humana num planeta cujas reservas estão sendo exauridas a passos largos.
Acredito que exista uma relação inseparável entre os conceitos de “cosmovisão” e “ecologia”. O primeiro é uma maneira peculiar de entender nossa relação com Deus, com o próximo e com o mundo; e o segundo é o estudo das interações dos seres vivos entre si e com o meio ambiente. Em outras palavras, aquilo que acreditamos acerca de nós mesmos, de Deus e do mundo onde vivemos determinará nossas decisões quanto ao planeta.
O cristianismo tem promovido através dos séculos uma cosmovisão coerente e abrangente que tem interagido com a ciência e o progresso. Estudiosos têm reconhecido a necessidade de uma base religiosa para a ecologia, área profundamente condicionada pelas crenças sobre nossa natureza e nosso destino — isto é, pela religião.
É fato que encontramos entre os grandes poluidores do planeta alguns países que nasceram sob a égide do cristianismo. Tal constatação não invalida os ensinamentos bíblicos sobre o cuidado com a natureza. No máximo, sugerem que esses ensinamentos não permearam suficientemente a cultura e a mentalidade dessas sociedades. Ou ainda, que os referenciais cristãos, que num passado distante foram adotados por elas, são agora rejeitados ou distorcidos, no todo ou em parte, em nome de interesses econômicos.
As seguintes formulações subjacentes à fé cristã reformada podem servir de base para a formação de uma mentalidade ecológica cristã.
1. O mundo foi criado por Deus. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1:1). O mundo é obra de suas mãos, mesmo que não saibamos, em termos científicos, a maneira pela qual a sua Palavra trouxe todas as coisas à existência. A origem divina de tudo o que existe não significa que nosso planeta é uma extensão de Deus ou muito menos que mereça nossa adoração. Significa que merece nosso respeito e nosso cuidado, como o lar que Deus preparou para nós e os demais seres vivos. Significa também que Deus é o soberano Senhor da criação, como disse Davi, rei de Israel, muito tempo atrás: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem” (Sl 24:1).
2. O mundo foi criado bom. “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1:31a). “Muito bom” é o veredicto do Criador sobre a natureza, declarada boa tanto por seu valor intrínseco quanto por sua perfeita adequação às necessidades humanas. Isso difere da visão do antigo dualismo entre matéria e espírito, que equiparava a matéria à desordem. De acordo com essa visão, a matéria é má e pecaminosa. Perspectivas que apresentam uma visão negativa do mundo físico ou que o separam da sua origem transcendente dificilmente podem nos dar alguma esperança de achar soluções racionais e abrangentes para nossos problemas ambientais.
3. O ser humano é único. De acordo com o cristianismo, o ser humano foi criado por Deus juntamente com a natureza e os demais seres vivos. Nesse sentido, é parte integrante dela. Todavia, foi feito de forma única, à imagem e semelhança de Deus, o que o distingue do restante da criação. A imagem de Deus implica, entre outras coisas, que o ser humano foi dotado de inteligência e, portanto, pode interpretar as leis do mundo e prover os meios de preservá-lo. Em algumas cosmovisões o ser humano, a natureza e Deus estão em níveis idênticos e fazem parte de uma mesma substância, o que torna impossível ao ser humano transcender a natureza para analisá-la, dominá-la e ajudá-la.
4. O ser humano é mordomo da criação. “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2:15). Deus o colocou no mundo como seu gerente e lhe deu alguns mandatos: cuidar da criação, de onde tiraria seu sustento, protegê-la e preservá-la, conhecê-la, estudá- la, para assim conhecer melhor a si mesmo e a Deus. O ser humano é o mordomo de Deus. Não é o soberano senhor, dono e déspota, mas o responsável diante de Deus pelo emprego correto dos recursos naturais, pelo seu próprio desenvolvimento de forma sustentável e pela preservação dos demais seres vivos.
5. Vivemos num mundo afetado pelo pecado. De acordo com a Bíblia, quando o ser humano colocado no jardim se revoltou contra o Criador, precipitou no caos a si mesmo e a criação pela qual era responsável. “Maldita é a terra por sua causa” (Gn 3:17) foi a sentença do Criador ao ser humano, agora sujeito à morte, a retornar ao pó de onde fora tirado. Tensões se estabeleceram entre Deus e o ser humano, entre o ser humano e seus semelhantes, e entre o ser humano e a natureza.
A crise que vivemos hoje se deve a estas tensões: Separado espiritualmente de Deus, o ser humano perdeu a referência da sua existência e da relação criatura-Criador. Essa última perda, em especial, afetou profundamente a sua maneira de ver o mundo, que ele ora agride e exaure, ora venera e teme como a um deus. Vivendo em tensão emocional em relação a seus semelhantes, o indivíduo dedica-se a buscar seus próprios interesses, mesmo que à custa do próximo. A exploração egoísta e desenfreada dos recursos naturais não leva em consideração seu provável esgotamento nas próximas gerações. Em tensão com a natureza, o ser humano a explora, agride e exaure, em nome do poder, do lucro e do progresso. O meio ambiente é para ele somente um bem de consumo.
Diante do exposto, entendemos que os problemas ambientais são primeiramente de origem moral e espiritual. Entendemos ainda que a solução passa pela transformação interior das pessoas, uma mudança de mentalidade com relação a Deus, ao próximo e à natureza. Em suma, é esse o apelo e o chamado do evangelho.
Cremos que a fé cristã reformada provê as premissas epistemológicas, morais, espirituais e éticas para que possamos lutar pelo meio ambiente e em prol do nosso planeta, promovendo a ecologia de forma coerente e integral.
Texto de Augustus Nicodemus
